"É proibido a entrada a quem não andar espantado de existir"
(José Gomes Ferreira)


segunda-feira, 29 de outubro de 2018


MEMORIAL IMAGINADO

 Sou Eliz, nascida em Campos Belos de Goiás, não por ser essa a minha terra no momento, mas porque onde morávamos, não havia recursos para tal, de modo que não conheço bem minha terra natal. Não havia muitas coisas onde cresci, ainda assim tive uma boa infância, pois fiz de muitos “lugares” a minha terra. Havia muitas aventuras por lá, pras bandas por onde vivi minhas meninices.
Se, é certo que na existência poética, memória e imaginação se misturam, não tenho certeza de que a infância que aqui narro foi de fato real, pois me recordo com clareza do canto dos pássaros, e do cheiro do campo após a chuva. Lembro-me quase como se fosse agora, e ao recordar, sinto o calor que queimava a face e do suor que descia, mas não sinto a dor das mãos estouradas por pilar o arroz, ou varrer vastos quintais. Dos quintais, lembro-me apenas da beleza das cores dos frutos do café e do pequizeiro; das sombras das bananeiras e do burburinho dos cocares, galinhas e patos.
As surras para lavar a louça quase apagaram por completo junto com o som da areia rangendo o alumínio, o que ficou foi o aroma do café no bule, e o estalar da lenha no fogão.
A escola, lugar em que nos obrigam a tomar consciência do que não podemos corrigir em nós mesmos, das feridas esgravatadas, também tem seu lugar de beleza. Lá conheci o cantinho das impossibilidades possíveis. Uma amada professora me apresentou a estrada de tijolos amarelos, e os outros caminhos para mundos desconhecidos e improváveis. Passei por várias aqui e acolá: as mesmas crianças cruéis, porém, as mais diversas bibliotecas. Que sorte!
Bachelard (1996, p. 94), disse que na infância a criança pode acalmar seus sofrimentos, entregando-se ao devaneio poético que por sua vez, sabe valorizar a solidão. Meus devaneios duravam noites inteiras sob a luz da vela, e nesse ínterim, desfrutava das criações dos que sabem criar. Era uma criança um tanto sem imaginação, porque a dureza dos afazeres me roubava todo o tempo, mas à noite, tinha sonhos lidos. Os livros me salvaram do pouco imaginar.

Minhas experiências com a leitura? Todas possíveis... Nos livros morei, respirei, vivi as venturas das crianças livres e amadas, dos criminosos castigados, das madames adúlteras, e fiz deles a minha profissão, e meu modo de vida. Por quê? Porque ser professor é isso. Não!? Ao menos para mim, que ainda lá visito com o mesmo anseio e aperto no peito, que a criança em fuga e a adolescente sem lugar, que outrora fui.
Quando fui aceita na universidade, não tive amigos, senti que bolsistas não os têm em instituições burguesas, mas os olhares retorcidos vão se apagando. As aventuras de entrar em ônibus sem o ticket e ser obrigada a descer várias vezes durante o percurso até chegar ao destino já não me apertam a garganta, como poderia?  Se o que levo comigo é as leituras de Manoel de Barros nas manhãs de sábado, a paixão do professor de literatura que me contagiou por completo e a lição de que memórias podem existir sem ser.
Ouvi por aí, que a universidade é o lugar de “cair na real”, mas o que é real? Escolhi meu curso, para estudar o lugar das minhas fantasias e também das moradas reais, que aqui não pude habitar. Fui feliz! E se neste deveria falar das minhas vicissitudes, eu não saberia fazê-lo qual Peter Pan, tentando atrelar a si mesmo sombras há muito perdidas.

Elizandra Lopes da Silva